Ao final da segunda rodada do Mundial da África do Sul, a América Latina pode ser apontada como o maior vencedor até agora. Enquanto potências europeias tradicionais como França, Inglaterra, Espanha e Itália temem uma precoce e humilhante desclassificação, e os africanos lutam para garantir pelo menos um representante nas oitavas-de-final, os latino-americanos se impõem sobre o resto do mundo. México e Uruguai podem se classificar juntos em um grupo onde muitos viam França e os anfitriões da África do Sul como prováveis vitoriosos. O Brasil obteve sua classificação antes do jogo final, enquanto a Argentina impressionou e já está praticamente garantida na próxima fase. O Paraguai lidera seu grupo à frente da atual campeã, a Itália, e o Chile precisa agora de apenas um empate contra a Espanha para terminar como líder do grupo. A Copa da África tornou-se a Copa da América Latina.
Seria apenas coincidência o fato de a região passar por um bom momento também fora de campo? Depois de praticamente duas décadas economicamente perdidas, de 80 e 90, que pelo menos tiraram a maior parte da região do ciclo do autoritarismo político, a América Latina é hoje levada mais a sério. Tráfico de drogas e violência urbana ainda assustam, como no caso do México. Mas a Colômbia acaba de concluir uma eleição que mostrou maturidade política e recompensou o governo por suas vitórias sobre a guerrilha. Uruguai, Paraguai e Equador recentemente elegeram governos de esquerda sem que isso desestabilizasse sua economia ou governabilidade. Peru e Brasil são exemplos de crescimento econômico em torno ou acima de 5%. Enquanto a mesma Europa que patina na Copa não consegue ver o fim de seus problemas econômicos, a América Latina saiu da crise mundial antes do previsto. Apesar do deslize de Honduras, do regime comunista cubano e de polêmicas envolvendo o governo da Venezuela, a região desfruta de estabilidade e liberdade politicas inéditas em sua história.
O passado nos reserva outras coincidências dentro e fora do campo. O tão sonhado tetracampeonato mundial brasileiro veio em 1994, exatamente quando entrava em vigor o real, a moeda símbolo de estabilidade que finalmente derrotou a hiperinflação. A vitória da Alemanha em 1990, ainda sob o nome de Alemanha Ocidental, simbolizou o nascimento de uma nova, unificada, poderosa nação, meses após a queda do Muro de Berlim. O primeiro título do Brasil ocorreu em uma época de investimentos e otimismo, durante a construção de Brasília e com Pelé simbolizando a força do Brasil emergente dos anos JK. A Argentina de 1986, apesar das dificuldades do governo de Raul Alfonsin, era uma nação confiante no futuro, três anos depois do fim de uma sangrenta ditadura militar. A Inglaterra conquistou seu único título em 1966, época extremamente estimulante para a Grã-Bretanha, com importantes mudanças culturais e sociais ao som dos Beatles e dos Rolling Stones.
Entretanto, a mesma Argentina venceu o Mundial de 1978, quando os generais estavam no auge de seu impulso repressivo marcado por milhares de mortes e desaparecimentos. A vitória brasileira no México, em 1970, ocorreu em um tempo de milagre econômico, mas também de grande repressão política, que não pode ser considerada exatamente uma fase feliz. A Itália de 2006 vivia sua tão comum realidade de governo fraco e dificuldades econômicas. Além disso, a Grã-Bretanha viveu um grande período de prosperidade de 1993 a 2008, com 15 anos de crescimento econômico ininterrupto, sem que isso fosse traduzido em bons resultados para a seleção inglesa. A boa fase de um país não é garantia de sucesso dentro das quatro linhas, e títulos foram obtidos quando o país passava por dificuldades. Mas as vitórias dos últimos dias nos campos da África do Sul coincidem com um dos momentos mais positivos da história da América Latina. A Copa do Mundo ainda está no começo, e o renascimento latino-americano está longe de estar consolidado. Mas, seja dentro ou fora de campo, los hermanos das Américas têm motivos para comemorar.