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Pressão fatal

Alguns modelos de gestão movidos a competitividade nociva e a exploração do trabalho sob assédio moral, pressões por desempenho e humilhações podem estar por trás de um ato extremo: o suicídio

Debruçou-se sobre o parapeito de uma das passarelas da rodovia Raposo Tavares, em São Paulo. Só tinha em mente pular e terminar com todo o sofrimento. Foi impedido por um companheiro de trabalho que passava. Maria tomou mais de 20 comprimidos, mas a dose não foi suficiente para que ela acabasse com a própria vida. Gislaine também tentou o suicídio tomando comprimidos.

Depois, jogou-se de uma das escadas de sua casa e sofreu traumas no corpo. Essas pessoas têm mais em comum do que o fato de ainda estarem vivas após frustradas tentativas de suicídio.

A primeira semelhança, o diagnóstico de depressão profunda, os insere numa estatística silenciosa e alarmante: estima-se que cerca de 15 milhões de pessoas sofram dessa doença no Brasil. O segundo elo está nos motivos que os levaram à decisão de se matar: problemas no trabalho. "Nos três casos ficaram claros fatores como assédio moral, perseguições, humilhações e sobrecargas, que desestruturaram e destruíram a vida dessas pessoas", afirma Margarida Barreto, médica especialista em saúde do trabalhador, pioneira no estudo do assédio moral.

Margarida é uma das autoras da cartilha Suicídio e Trabalho – Manual de Promoção à Vida para Trabalhadores e Trabalhadoras, lançada em maio pelo Sindicato dos Trabalhadores nas Indústrias Químicas, Farmacêuticas, Plásticas e Similares de São Paulo. Há uma década, sua pesquisa estarrecedora sobre assédio moral, intitulada Jornada de Humilhações, revelou que de 2.072 entrevistados 42% sofriam de humilhações constantes em seus ambientes laborais – 16% desse grupo já havia pensado em se matar.

No ano passado, a médica organizou outra pesquisa, Suicídio e Trabalho: Homicídio Culposo Corporativo?, ouvindo 400 trabalhadores, 84 homens e 316 mulheres. Mais de um quarto desse grupo teve ideias suicidas ligadas ao trabalho – tendência proporcionalmente mais presente entre os homens (37%, ante 24% das mulheres). "Os resultados da pesquisa e as histórias colhidas em meu consultório chamaram a atenção para uma realidade que coloca o suicídio como resultado da exploração constante que os trabalhadores têm sofrido, como um grito de socorro que ainda não foi ouvido."

Para o psicólogo Nilson Berenchtein Netto, co-autor da cartilha, um dos motivos para que a relação entre suicídio e trabalho seja negligenciada é que as análises de doenças como depressão e outros transtornos psíquicos quase sempre consideram que o problema está no indivíduo. "Ou se diz que essas patologias ocorrem por falta de algum neurotransmissor, de alguma substância que faz com que a pessoa se deprima, ou que surgem do próprio psiquismo, considerando que ela se deprimiu porque não conseguiu se adaptar às relações sociais e pessoais. Essas correntes não levam em conta o trabalho como uma categoria fundamental na constituição do homem nem, portanto, a relação entre trabalho, depressão e suicídio", diz Netto.

Segundo a Organização Mundial de Saúde, 3 mil pessoas suicidam-se todos os dias no mundo. A média aumentou 60% nos últimos 50 anos. Porém, a maioria dos órgãos ligados ao assunto, incluída a OMS, distancia-se de ver danos decorrentes de relações inadequadas de trabalho. Embora assuma o suicídio como problema de saúde pública, o órgão liga os casos a transtornos mentais, depressão, drogas. E quando os relaciona ao trabalho o faz de maneira discreta, atribuindo-os a vulnerabilidade individual.

No Brasil, segundo o Ministério da Saúde, a taxa de 4,5 casos de suicídio em cada 100 mil mortes é considerada baixa, embora seu crescimento seja preocupante. Mais de 90% deles são atribuídos a transtornos mentais e ao abuso de substâncias psicoativas, sem relação direta com o universo do trabalho.

Margarida Barreto vê nesse cenário uma tentativa de responsabilizar o indivíduo pelo suicídio, deixando de lado fatores sociais marcantes. "É preciso ver a tentativa de tirar a própria vida como uma grande denúncia às condições de trabalho impostas pelo neoliberalismo nas últimas décadas, baseada no assédio moral e numa verdadeira gestão por injúria", reforça a médica.

Setor bancário: depressão epidêmica

Embora haja muitas estatísticas referentes ao adoecimento e à depressão de trabalhadores, poucas pesquisas relacionam tais doenças ao suicídio. Uma das pioneiras foi apresentada na década passada pelo professor Ernani Xavier, mestre em Administração pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Xavier identificou 76 bancários que se suicidaram entre 1993 e 1995, época em que estavam em alta temas como reorganização do trabalho, aceleração tecnológica, privatizações, fusões, programas de demissão voluntária e demissões em massa – no período, foram demitidos mais de 430 mil trabalhadores no setor em todo o Brasil.

Em 2009, o trabalho Patologia da Solidão: O Suicídio de Bancários no Contexto da Nova Organização do Trabalho, tese de mestrado em Administração de Empresas de Marcelo Augusto Finazzi Santos, na Universidade de Brasília (UnB), apurou que 181 bancários terminaram com a própria vida de 1996 a 2005 – em média, um a cada 20 dias. Entre as principais causas, assédio moral, pressões por metas, excesso de tarefas e medo do desemprego.

Em 2007, cansada das humilhações no ambiente de trabalho, a bancária Mônica, de 25 anos, tentou acabar com o sofrimento tomando uma overdose de remédios. Ela mesma relata: "Olhei pra cima e falei: ‘Me leva porque eu não aguento mais as humilhações, os xingamentos’. Minha mãe me socorreu. Em 2009, eu tentei de novo com 40 ou 50 comprimidos de medicamentos controlados. Fui levada para o hospital.

Não aguentava mais, o gerente me ignorava, não falava comigo, passava meus clientes para os outros. Eu simplesmente não existia. O médico me afastou, mas meu gerente me forçou a trabalhar mesmo com atestado. Aí, pediu minha demissão".
Mônica não suportava mais ouvir insultos dos superiores. "Um dia eu estava almoçando, eram mais de 16h, e a minha gerente geral começou a gritar: ‘Não pode comer!’. Eles nos humilhavam na frente de todo mundo. ‘Que porcaria de produção é essa? Vocês querem que eu enfie um Sonrisal no c* de vocês para andarem que nem jet ski?’ E eu não conseguia esquecer essas coisas. Ia ficando cada vez pior."

Em novembro de 2009, ela foi pressionada a abrir em uma semana 100 contas de renda acima de R$ 4 mil. "A meta geral era abrir dez contas dessas em um mês. Em uma semana era impossível. Diziam ‘se vira!’ E eu pensei: ‘Vou acabar com tudo, com a minha vida, com essa dor de cabeça, eles vão parar de me humilhar’. Assim não teria mais de ir trabalhar com essas pessoas. Por isso, se minha vida acabasse hoje, tudo bem. Eles acabaram com a minha vontade de viver."

Para a médica Maria Maeno, coordenadora do grupo temático Organização do Trabalho e Adoecimento, da Fundacentro (órgão do Ministério do Trabalho que atua em questões de saúde), o suicídio ligado ao trabalho é pouco estudado no Brasil por dificuldades metodológicas. A depressão, alerta ela, tornou-se epidêmica no mundo inteiro, mas é pior nessa categoria. "O ramo financeiro talvez seja o que tenha sofrido a maior reengenharia na organização do trabalho. Com a automação, a velocidade da informação e das transações, a demanda ficou mais rápida e eles têm de responder mais rapidamente também. Todos têm de vender produtos – que não são de primeira necessidade – e cumprir metas, independentemente de onde estejam. Quando você é pressionado, os comportamentos são os mais diversos", explica Maria Maeno.

"É preciso haver acordo entre trabalhadores e bancos. Os bancários estão vulneráveis e não reagem quando passam por essas situações. Isso não é culpa do gerente geral ou do superintendente, são as chefias imediatas as que aparecem, mas sobre elas há a pressão que vem da forma como o sistema bancário funciona", adverte.

Pesquisa feita com bancários de todo o Brasil sobre as prioridades da campanha nacional deste ano mostra que para quase 80% da categoria o combate ao assédio moral e às metas abusivas são os principais problemas nos locais de trabalho.

Para a presidenta do Sindicato dos Bancários de São Paulo, Osasco e Região, Juvandia Moreira Leite, o assédio tem a origem no sistema de organização do trabalho imposto pelos bancos."Nós temos várias reclamações de gerentes-gerais de agência dizendo: ‘Eu não aguento, meu diretor fica ligando todo dia, tenho de me controlar muito para não repassar essa pressão para o meu quadro de funcionários’", diz.

Juvandia admite que há problema com o comportamento individual das chefias, mas considera que a organização do trabalho do banco induz a esse comportamento.  Para ela, é importante criar instrumentos para que o banco condene formalmente essa conduta. "Ele tem que garantir que não admitirá isso. Tem de ter prazo para apurar denúncias e tomar providências. Há casos em que se demora seis meses ou mais para apurar. Tem muitos bancários afastados por causa de depressão, mas também os que não estão afastados, mas tomam remédios. Em agências, acho que no mínimo uma pessoa tem esse problema ou desenvolve sintomas."

Só no primeiro semestre deste ano, 18 mil funcionários saíram dos bancos, metade deles pediu demissão. "O trabalho bancário hoje é muito caracterizado pela pressão, pela cobrança. É fundamental que a gente encerre a campanha salarial com algum avanço no combate ao assédio porque realmente é um grave problema em todos os bancos, públicos e privados", afirma a presidenta do sindicato.

Fonte: http://www.redebrasilatual.com.br/revistas/52%20C/pressao-fatal

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