Michelangelo Marques Torres
“Não há que ser forte, tem que ser flexível” – ditado popular chinês
Vivenciamos um monumental processo de desconstrução dos direitos sociais por parte dos capitais em todas as partes do mundo – tanto nos países centrais como nos países periféricos e subordinados, como é o caso brasileiro. Desde o aparecimento do ornitorrinco na década de 1990, para lembrarmos a metáfora do professor Francisco de Oliveira, convivemos com os esforços de desmonte de nossa recente e delicada legislação social e trabalhista.
Recentemente, vislumbra-se a aprovação de um projeto de lei denominado Acordo Coletivo do Trabalho Com Propósito Específico, cunhado como Acordo Coletivo Especial (ACE)[1]. Afinal, do que se trata?
O projeto de lei, além de se colocar explicitamente como contrário ao Direito do Trabalho, representa um retrocesso da legislação social e do trabalho. Antes de comentá-lo, cabe um breve comentário da cartilha que apresenta o documento em questão. O documento é assinado pelo Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, Sindicato dos Metalúrgicos de Taubaté, Sindicatos dos Metalúrgicos de Sorocaba e Sindicato dos Metalúrgicos de Salto (todos filiados à CUT – Central Única dos Trabalhadores). Estampando fotos de trabalhadores felizes e contentes (todos sorrindo), enfatiza mensagens motivacionais e positivas, supondo retratar a “realidade brasileira” como harmoniosa. Dirigida aos trabalhadores, mas orientada para o mercado, a cartilha do ACE procura, habilmente, aproximar os trabalhadores de seus argumentos retóricos, com termos como “autoconfiança”, “modernizar as relações de trabalho”, harmonizar as divergências entre pobres, trabalhadores e empresários, além da “necessidade” da legislação brasileira acompanhar a inovação modernizadora dos países avançados, “inovações que os tempos atuais exigem”. Conforme referencia o documento: “nas democracias da Europa, começaram a nascer no século 20 relações mais avançadas de convivência e disputa entre trabalhadores e empresas, com base na negociação coletiva”. Modernização confunde o imaginário do trabalhador como algo positivo, o que na verdade oculta a precarização do mundo do trabalho recente.
Numa tentativa de sintetizar a história do Brasil pelo fio condutor das leis trabalhistas, o documento simplesmente não menciona a conjuntura neoliberal inaugurada nas últimas décadas no Brasil, deixando intocável o governo FHC. Apenas procura enaltecer o governo Dilma (na esteira de Lula). A ideologia empresarial e o discurso de management também transparecem em argumentos de defesa da chamada “responsabilidade social da empresa”, postulando a quimera do “respeito ao trabalhador e sua família, salários dignos, relações de trabalho respeitosas, tolerância, estabilidade, disposição permanente ao diálogo e negociação”. Enfim, a “modernização das relações de trabalho” defendida exigiria, nesses termos, uma “nova postura” orientada pela “ação consciente” do empresariado moderno, que se preocuparia com os trabalhadores, o meio ambiente, a comunidade, o desenvolvimento econômico e a sustentabilidade do planeta.
Objetivamente, o documento diz que, uma vez aprovada, a nova lei “dá às partes o poder de dispor sobre a melhor forma de aplicação do direito à determinada realidade”. Ou seja, baseia-se na livre negociação e na individualização das relações de trabalho. Segundo o projeto de lei, procura-se “criar instrumentos que possibilitem a trabalhadores e empresas estabelecer, voluntariamente, normas condizentes com especificidades daquele local de trabalho”. (…) “Isto significa, portanto, que o poder público não poderá interferir e intervir na organização das entidades sindicais”. E mais, “condições específicas de trabalho” devem orientar “adequações nas relações individuais e coletivas de trabalho e na aplicação da legislação trabalhista”. Por outras palavras, todo poder ao mercado e desregulamentação das leis trabalhistas! Assim, as palavras de ordem são: flexibilização e desregulamentação.
Além de nada acrescentar na melhoria da negociação sindical, envolvendo trabalhadores e patronato, o “propósito específico” é polêmico e carece de maior debate público. O acordo parece negligenciar a luta pela elevação salarial, efetiva redução e limitação da jornada de trabalho, as fraudes (como banco de horas), os adoecimentos do trabalho, a regulamentação e estabilidade no emprego, a ampliação dos direitos dos trabalhadores, o direito de greve, a horizontalização das relações sindicais e a autonomia sindical, o incentivo à negociação coletiva, a participação dos trabalhadores na gestão das empresas, a formalização do trabalho informal, a questão do assédio moral patronal etc. Recentemente, em “Manifesto contra o Acordo Coletivo Especial, defendido pela CUT” [2], uma série de entidades, juristas e pesquisadores do mundo do trabalho se manifestaram contrários ao acordo em questão.
Tal acordo parece estar em consonância com a agenda social do empresariado. Curiosamente, em nada toca ao direito de greve – em contexto de crescentes mobilizações, paralisações e greves em distintas regiões do país. Legalizar este acordo equivale a intensificar a desregulamentação e a abertura desenfreada o empresariado (com ampliação do banco de horas e demais mecanismos de horas extras, parcelamento do 13º salário, redução das férias dividas em períodos, contratações temporárias e terceirizações sem limites). É preciso se ter em mira o fato de que a reorganização empresarial (mudanças sócio-reorganizacionais) implicam mudanças na reorganização do trabalho e nas relações sociais, como a intensificação do trabalho, aumento das jornadas, as formas “modernas de precarização” e flexibilização, como a terceirização, os contratos temporários, o trabalho à curto prazo (part time), o trabalho em domicílio, as subcontratações e encomendas, a informalidade, a “pejotização” (trabalhadores compelidos a se tornarem pessoa jurídica) e as falsas cooperativas (“coopergatos”), o trabalho da “economia subterrânea” (a que são submetidos muitos dos trabalhadores/as imigrantes), a instabilidade, as demissões e o desemprego. Precisando melhor, os problemas que concretamente afligem a nova morfologia do trabalho.
Recentemente, ainda, vivenciamos a mudança de um sindicalismo de confrontação para um sindicalismo negocial. E com a flexibilização acelerada da legislação trabalhista, os sindicatos estariam livres para negociar diretamente no âmbito das empresas. A proteção dos direitos sociais é a única segurança, historicamente construída por meio das lutas sociais, de que os trabalhadores dispõem. Os ataques e planos estruturais contra tais direitos têm sido correntes pelo plano do capital nos países europeus em que a crise financeira se evidencia com mais peso.
Estamos diante de um crucial desafio do movimento sindical e dos trabalhadores. Nessa luta de classes, o empresariado parece encontrar apoio por parte de uma parcela da direção sindical. Antes disso, necessitamos de uma luta sindical anticapitalista, sem corporativismo e sem submissão ao capital ou aos aparelhos governamentais. Sindicato combatente é sindicato autônomo e independente. A realidade apresenta a urgência em transcendermos não apenas a individualização, mas o corporativismo, a burocracia, a verticalidade, a fragmentação. O início de século que vivenciamos se apresenta numa conjuntura que os movimentos sociais e os conflitos globais ganham peso, com maior espaço para as lutas contra a crise, a precarização, o desemprego e, em certa medida, de lutas de cariz anticapitalistas.
Precisamos de sindicalismo de classe e de confronto, não de sindicalismo de negociação nem de burocracias sindicais atreladas ao Ministério do Trabalho e seus recursos. Os sindicatos e os trabalhadores, bem como a legislação trabalhista, não tem que se adaptarem as novas necessidades construídas pelo capital em seu contexto de crise. Nada é inevitável ou irreversível na história. Trata-se de correlação de forças.
No fundo, não é uma proposta sindical apenas, mas um projeto que a antecede, de fonte patronal e já apresentada como proposta governamental (em 2001 por FHC[3]; em 2005 pelo governo Lula[4]), e que atualmente se vê encampada pela CUT. Não é de agora a aproximação da CUT com os interesses patronais (e com a própria Força Sindical, a exemplo dos benefícios do FAT). A partir do governo Lula, houve uma política de cooptação das lideranças sindicais (não esqueçamos o fato do presidente da CUT ter assumido o Ministério do Trabalho e Emprego no governo Lula). Esse sindicalismo parece se enveredar pelos meandros da acumulação do capital – que num contexto de crise pressupõe elevar a produtividade e a intensificação do trabalho em conjunto com a redução dos gastos sociais.
O capitalismo sindical[5], com sua verticalizada burocracia, além de distante de suas bases representa a vigente lógica do sindicalismo negocial capitalista, dispondo de orientações reformistas adotadas pelas direções sindicais. Os trabalhadores precisam entender que um sindicato como do ABC não pode construir leis para o conjunto dos trabalhadores segundo sua visão de mundo e as determinações empresariais.
Portanto, o nefasto Acordo Coletivo Especial se baseia na livre negociação e na flexibilização das leis trabalhistas – com prejuízo para os direitos sociais no mundo do trabalho. A redução de direitos trabalhistas se apresenta como solução de uma crise do capital. O governo Dilma que promete levar o Brasil para a modernidade cada vez mais anuncia o projeto de classe que o sustenta. É diante de correlações de forças como estas, no enfrentamento da luta de classes e no embate cotidiano, que podemos identificar de que lado estão as centrais sindicais (que não são homogêneas), os partidos políticos, movimentos sociais e atores coletivos da sociedade civil. Todo apoio e convergência à luta contra o Acordo Coletivo Especial, nome pomposo e filhote dos interesses patronais.
São Paulo, 13 de novembro de 2012.