AEBA Saúde

A luta contra o suicídio é coletiva*

Gilson Lima**

Venho acompanhando por algum tempo a questão do suicídio de trabalhadores bancários. A necessidade em abordar o assunto foi se colocando, principalmente, pela presença constante de um ou outro colega no ambiente de trabalho que apresentava alguma forma de transtorno mental, sobretudo, depressão. Ao ler matérias sobre o tema ou receber notícias de morte ou de uma crise relacionada ao assunto, passei a temer que alguém próximo, surpreendentemente, pudesse vir a ser uma vítima fatal em virtude de problemas dessa natureza. Afinal, essas coisas não as percebemos tão facilmente.

Resolvi escrever porque esse assunto está, de um jeito ou de outro, na pauta de conversas entre amigos trabalhadores, até porque os números são realmente preocupantes. Mas, infelizmente, ainda não se tornou uma pauta de importância para entidades de classe, que ainda não contribuem de forma concreta para a luta e o enfrentamento no âmbito de nossa saúde mental.

Nos últimos anos nos deparamos com o aumento de casos de adoecimentos por transtornos mentais e suicídio entre trabalhadores bancários, agravada principalmente com a reestruturação nos bancos. Segundo o Sindicato de Bancários de São Paulo:

Os transtornos psiquiátricos já superaram as doenças osteomusculares que por muitos anos foram campeãs de incidência entre os trabalhadores bancários. (…) nos Centros de Referência em Saúde do Trabalhador (CRST) do município de São Paulo, somente de junho a novembro de 2015, dos 102 atendimentos a bancários realizados nos centros, 54% apresentavam transtornos metais. Em seguida estão problemas como LER e Dort (Lesões por Esforços Repetitivos e Doenças Osteomusculares Relacionadas ao Trabalho) com 30,39% dos atendimentos. (…) Os bancos nem negam mais que o trabalho bancário adoece. Ainda querem atribuir as pressões aos gestores, mas estes também adoecem e são afastados. A recente intensificação das demissões nos bancos privados e as reestruturações nos bancos públicos aumentou a angústia dos trabalhadores e o número de casos extremos também aumentou. (…) Outro dado alarmante de saúde mental é de que no ano passado, 75,3 mil trabalhadores foram afastados em razão de depressão, com direito a recebimento de auxílio-doença em casos episódicos ou recorrentes. Eles representaram 37,8% de todas as licenças em 2016 motivadas por transtornos mentais e comportamentais, que incluem não só a depressão, como estresse, ansiedade, transtornos bipolares, esquizofrenia e transtornos mentais relacionados ao consumo de álcool e cocaína [1]. Grifos meus.

Em março de 2017 a situação no Banco do Brasil ficou alarmante, segundo a AGEBB (Associação dos Gerentes do Banco do Brasil):

Chega à AGEBB a informação da morte, por suicídio, de um colega da área de comunicação da Super PE. No dia 10 de fevereiro, outro, da Superintendência Super Leste (Campinas/SP), também dava cabo da própria vida. Esses são os registros de apenas dois casos muito recentes de colegas do BB que chegaram ao extremo do estresse, perda do sentido da vida ou seja lá qual for o motivo que leve alguém à atitude de tirar a própria vida. Um levantamento realizado por uma comunidade de funcionários do BB nas redes sociais revela que 64 colegas se suicidaram nos últimos meses [2]. Grifos meus

A afirmação que, entre bancários, a maioria dos afastamentos seja por transtornos mentais, como dito acima, contrasta com o tipo de adoecimento majoritário se levado em consideração o conjunto dos trabalhadores atendidos por planos de saúde no Brasil. Segundo matéria da Folha de São Paulo, mesmo que a busca por atendimento médico psiquiátrico tenha crescido 54% entre 2014 e 2017, e que nos nove primeiros meses de 2018 tenha aumentado em 12% relativos ao mesmo período do ano passado, este tipo de doença está em terceiro lugar entre doenças causadas pelo processo de trabalho:

Dados de relatórios anuais da ANS (Agência Nacional de Saúde Suplementar) compilados pela Folha revelam que o número de consultas psiquiátricas cobertas pelos planos saltou de 2,9 milhões em 2012 para 4,5 milhões em 2017. O aumento de 54% é o quíntuplo dos 10% registrados no mesmo período pelas consultas ambulatoriais de forma geral. (…) Embora permaneçam em terceiro lugar entre as doenças causadas pelo próprio emprego —atrás de lesões e problemas musculares—, a parcela de afastamentos por transtornos mentais tem aumentado [3].

Na mesma matéria da Folha, vemos que os valores médios dos benefícios relativos ao afastamento por transtornos mentais são superiores à média de outras enfermidades, o que dá a entender que esses afastamentos acidentários possam ser majoritários para quem recebe maiores salários:

Dados levantados pelo INSS mostram que o valor médio mensal do benefício pago a trabalhadores afastados por cinco doenças representativas —alcoolismo, episódios depressivos, depressão recorrente, ansiedade e reação ao estresse— foi R$ 2.243 em 2017. (…) Esse valor é 46% mais alto do que o pagamento mensal médio de R$ 1.538 ao total de segurados afastados por doenças do trabalho. (…) Em 2008, a diferença era menor, de 35%, o que sugere que tem crescido a fatia de trabalhadores mais bem remunerados entre os que sofrem transtornos mentais. Isso talvez ajude a explicar o salto significativo na demanda por cobertura dos planos de saúde por esse tipo de enfermidade [4].

O gráfico acima, da mesma matéria da folha, com valor mensal dos benefícios, de fato, “sugere que tem crescido a fatia de trabalhadores mais bem remunerados entre os que sofrem transtornos mentais.”. Porém, não quer dizer que este adoecimento não cresça entre os de trabalhadores de menores salários e, até que, este crescimento possa ser maior em termos relativos e absolutos, quando se têm em mente todos os trabalhadores. Pois, os dados não abrangem o conjunto dos trabalhadores informais, além do viés pela descaracterização do nexo com trabalho (desigual entre categorias profissionais) para os trabalhadores com cobertura previdenciária.

Uma realidade que não tem como esconder. Sabemos que acontece, e, ao menos, desde a década de 1990, serve como objeto de estudo de vários trabalhos acadêmicos e quase todos nós, trabalhadores de bancos, acompanhamos nos nossos locais de trabalho a existência e o crescimento do sofrimento de nossos amigos (e/ou de nós mesmos).

Uma visão corrente entre alguns estudiosos e de algumas entidades sindicais é a de que o problema está relacionado com as reestruturações dos processos produtivos. Isso quer dizer que, as extinções de vagas, o aumento da intensidade no processo de trabalho, jornadas abusivas, avaliações competitivas e individuais de desempenho, metas, etc. Figuram entre as principais causas dos adoecimentos.

Acompanhando essa situação, algumas entidades sindicais começam a debater e/ou publicar sobre o assunto. Em um artigo da Psicóloga, Mestre e Professora Marselle Fernandes, publicado em setembro último, no Sindicato dos Bancários do Ceará, aponta um diagnóstico:

O suicídio de trabalhadores representa o mais elevado nível de sofrimento. De acordo com Christophe Dejours, um dos principais estudiosos sobre a temática suicídio e trabalho, o aumento de casos de suicídios relacionados ao trabalho se deve a fatores como o aumento do individualismo, a competição desmedida, a pressão constante, as avaliações de produtividade e a gestão por metasMuitas vezes, exclui o fator trabalho da investigação acerca dos motivos do suicídio. Contudo, os modelos de gestão adotados por grande parte das instituições financeiras, favorecem o sentimento de insegurança, medo, autoexigência e a solidão por parte dos trabalhadores. Nesse sentido, o trabalho deixa de ser um elemento coadjuvante e, torna-se protagonista do sofrimento psíquico dos bancários. Essas novas formas de gestão desestabilizam o coletivo de trabalhadores e, com isso, reduzem a possibilidade de construir formas de transformar o cotidiano laboral em um espaço produtor de saúde [5]. Grifos meus

É bom ressaltar essa frase da pesquisadora: “Essas novas formas de gestão desestabilizam o coletivo de trabalhadores e, com isso, reduzem a possibilidade de construir formas de transformar o cotidiano laboral em um espaço produtor de saúde”. Para isso podemos citar um exemplo do Dr. Marcelo Augusto Finazzi Santos, pesquisador na área de recursos humanos pela Universidade de Brasília (UNB) feito no auditório da Casa dos Bancários em Porto Alegre em 12 de dezembro de 2014 sobre como se manifesta o problema na cabeça de um trabalhador bancário:

Caio começou a sentir que estava sozinho. Cada um dos colegas em seu departamento era um concorrente. Ele não podia comentar uma ideia que teve, alguma solução que pensou para resolver algum problema de rotina, porque podiam roubar sua ideia, levar ao gerente e ganhar prestígio. Ele então passou a sofrer. Cansou de receber trabalho por volta das seis horas, perto do término da sua jornada e ter que ficar mais quatro, cinco, seis horas para finalizar a tarefa: nada podia ficar para o outro dia. Um dia, ao dirigir seu carro para o trabalho, remoendo as relações em frangalhos com colegas, e a sua própria sanidade perdida, Caio pensou em se matar [6].

Infelizmente, esse é um relato comum em qualquer ambiente de trabalho bancário.

Resumindo: os novos processos de trabalho, formas modernas de reprodução do capital, modificam o ambiente, inclusive conformando “o sentimento de insegurança, medo, autoexigência e a solidão por parte dos trabalhadores[7]. Mas essa é apenas uma face da moeda. Não é só isso o determinante dos adoecimentos. Dizendo de outra maneira: não podemos reduzir os adoecimentos somente a esses determinantes: metas, excesso de trabalho, avaliação de desempenho individual, etc. Cabe aqui ressaltar a desestabilização do coletivo de trabalhadores. Ou seja, as coisas se agravam com a ausência de coletividades, de um ambiente e de uma luta além do sindicalismo, existente no passado e abandonado pelos atuais aparelhos sindicais. Não existe mais, em muitos locais de trabalho, principalmente nos bancários, lutas e organismos de luta por locais de trabalho que funcionem de forma independente e autonomamente; existe muito pouco de solidariedade e mutualismo organizado nos locais de trabalho pelos próprios trabalhadores.

É nesse sentido que gostaria de afirmar a tese do título do texto: a luta contra o suicídio é coletiva. Não é uma tentativa de apagar as singularidades de cada um, ou trazer uma forma simplista para um problema tão complexo. E sim, ressaltar que se trata de um fenômeno decorrente de nossas condições e formas de trabalho, concomitantemente a nossa desorganização e competição mútua. Por sua vez, essas só poderão ser alteradas com nossa união.

Algumas entidades sindicais atualmente movem-se em vários sentidos para amenizar o problema do adoecimento psíquico e do suicídio: assistência psiquiátrica e psicológica; levantamentos estatísticos de adoecimento; promoção, apoio e divulgação de estudos, etc. Tudo isso é útil, necessário, urgente, e a entidade que ainda não faz tem que iniciar. Mas será insuficiente se não vier acompanhado de estudos em prol de novas práticas na luta que possam resgatar coletivos de trabalhadores nos locais de trabalho que transcendam a luta meramente “econômica”.

Precisamos, ao mesmo tempo, reforçar nossas “velhas” lutas e avançar sobre novos problemas que nada possuem de “individuais” ou “casos isolados”. Em ambos os casos, reformulando nossa identidade coletiva, semeando e reforçando espaços e laços de apoio e solidariedade entre nós, reativando nossa força coletiva.

Aliás, podemos e devemos aprender muito com vários locais de trabalho que, mesmo diante dessa conjuntura, mantém seus coletivos e se cuidam mutuamente. Talvez falte as entidades sindicais sobretudo fomentar, aprender e sistematizar essas práticas – com aqueles que lutam diariamente para manter a si e a seus companheiros de trabalho sãos.

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* Este texto é escrito na comoção da notícia de uma colega que abraçou a morte pulando de um hotel ao lado do prédio onde trabalhava. Não há como não ficar sensivelmente abalado, muito menos esconder uma tragédia dessa magnitude quando sabemos que vários dos nossos amigos estão adoecendo no trabalho e que uma outra história como essa possa surgir sem que “não saibamos” o porquê. Mas adiantamos que essa triste notícia foi somente o impulso para escrever o texto. Não há nenhuma tentativa, de minha parte, em relacionar diretamente o escrito aqui com a atitude específica e triste da colega. Não sei os motivos e se o soubesse não o utilizaria expondo a família e os entes queridos sem as suas respectivas autorizações. O texto tem minha assinatura mas, antes de ser publicado, recebeu a crítica de alguns companheiros. Destaco uma: que diz que não foi apresentada uma saída concreta, que “as “lutas e organismos de luta por locais de trabalho…” parecem em abstrato, deslocadas/apartadas da ação do que enfrentar..” “…em abstrato (mais como propaganda) e, alguns, até prescritivos (dizer aos trabalhadores o que devem fazer sem dizer concretamente o que e como”. Concordo com a crítica, esse é o limite do texto e, espero que por hora, limite do próprio autor, sem ainda nenhum vínculo militante mais profundo com essa causa específica. O texto tem a finalidade de abrir o debate não somente com as direções sindicais, mas com todos que procuram pontos de partidas concretos para a luta cotidiana em torno desse problema.

** Engenheiro Civil no Banco da Amazônia desde dezembro de 2001, lotado como operativo na Supervisão de Engenharia da Central de Crédito 01, diretor da AEBA e do SENGE.

1 – Adoecimento mental na rotina dos bancários – Situação, que já era grave, ficou pior com a reestruturação em bancos públicos e com a demissão em massa nos bancos privados, em http://spbancarios.com.br/02/2017/adoecimento-mental-na-rotina-bancarios . Publicado em 14/02/2017, acessado em 15/12/2018

2 – Suicídio: desfecho trágico de bancários que sucumbem às violências do trabalho, em http://www.agebb.com.br/suicidio-desfecho-tragico-de-bancarios-que-sucumbem-as-violencias-do-trabalho/ Publicado em 30/03/2017, acessado em 19/11/2018.

Os dados acima foram levantados por empregados e citados aqui http://direitofacil.net/reestruturacao-do-bb-teria-gerado-onda-de-suicidios-entre-funcionarios/ texto publicado em 17/03/2017 e acessado em 19/11/2018. É bom ressaltar que é um levantamento feito por bancários feito em redes sociais, portanto sem um critério científico mas, ao mesmo tempo, se esses números não forem exatos, nos trazem a dimensão do problema em que vivem os trabalhadores do Banco do Brasil.

3 – https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2018/11/crise-no-emprego-eleva-em-14-milhao-o-numero-de-consultas-psiquiatricas.shtml. Em 28/11/2018, acessada em 30/11/2018.

4 – Não quer dizer que os transtornos mentais são majoritários para quem recebe maiores salários. Mas apenas, como diz o texto, “dá a entender que esses afastamentos possam ser majoritários para quem recebe maiores salários”. Os dados tem por base os benefícios auxílio-doença (com nexo com o trabalho) concedidos pelo INSS.  Veja que estamos falando apenas de afastamentos que geram benefícios concedidos pelo INSS. Não inclui qualquer afastamento, por exemplo, os menores de 15 dias mesmo com atestado médico, nem os maiores de 15 dias que foram solicitados mas foram negados pelo INSS ou foram concedidos como benefício auxílio-doença previdenciário (sem nexo, inclusive, como geralmente acontece, pela descaracterização do nexo com o trabalho).

5 – Um dos estudos é o realizado por Marcelo Augusto Finazzi Santos “Patologia da solidão: o suicídio de bancários no contexto da nova organização do trabalho” de junho de 2009, encontrado em http://repositorio.unb.br/bitstream/10482/4266/1/2009_MarceloAugustoFinazziSantos.pdf,  acessado em 20/11/2018 e, segundo o trabalho, o sofrimento é provocado, sobretudo, pelas péssimas condições de trabalho. Entre 1996 e 2005, 181 bancários suicidaram-se no Brasil. Segundo o autor: “estudo demonstrou que qualquer pessoa considerada normal está sujeita a passar pelo mesmo processo (…) por mais equilibrada que seja a pessoa, caso não encontre soluções práticas para livrar-se das causas do sofrimento, seja por meio de uma remoção para outro setor na empresa, seja por troca de emprego ou aposentadoria, a possibilidade de adoecimento é enorme; alguns somatizam doenças físicas, outros desenvolvem transtornos mentais”.

6 – Trabalho bancário, adoecimento e suicídio, encontrado em http://www.bancariosce.org.br/noticias_detalhes.php?cod_noticia=21654&cod_secao=1. Última atualização em 18/09/2018, acessado em 20/11/2018.

7 – Pesquisador diz que é preciso falar sobre o suicídio para prevenção, em http://www.bancariospe.org.br/noticiasapp.asp?codigo=12277#.W-7oczhKiCg Publicado em 15/12/2014 acessado em 16/11/2018.

1 Comentário
  1. Lindomar 6 anos ago
    Reply

    Basta passar alguns dias no hospital Gaspar Viana e perceber o fluxo de pacientes entrantes devido à causa em pauta…

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